Luís Paulo Costa — Palavras essenciais

Começo por referir um trabalho que quase pode passar despercebido na presente exposição de Luís Paulo Costa (LPC). Não o faço para chamar a atenção para ele, porque a quase invisibilidade, a quase imperceptibilidade da apresentação de alguns dos seus trabalhos tem sido estratégia deliberada e recorrentemente empregue por LPC. Também não irei descrever a referida peça. Se o fizesse seria de modo a escrevê-la exactamente como ela é, como se aplicasse o método que LPC tem vindo a desenvolver no seu trabalho nesta última década: pintar o que existe, sobre aquilo que existe, com a exacta cor pré-existente. Interessa-me antes mencionar dois atributos com que LPC me caracterizou, repetidamente, o tipo de imagens que utiliza na série que denomina Estudo de cor – não é pela qualidade ou propriedade das imagens que estas são integradas no trabalho. Qualidade e Propriedade parecem-me ser os dois parâmetros (que agora extravaso para toda a sua pesquisa) que desenham os limites do universo de objectos, ou de matéria-prima, que LPC tem vindo a convocar para o seu trabalho. Ou melhor, é por via da inaptidão de qualquer qualidade ou propriedade específica desses objectos eleitos, que estes vão ao encontro do artista, ou vice-versa

Este universo composto de elementos genéricos, banais ou regulares – chamemos-lhes de arquétipos, específicos da sua prática artística – parece dividir-se em dois planos operatórios: um que reúne objectos genéricos, banais ou regulares (sacos de papel, tomadas eléctricas, telefones, bancos, cadeiras, fechaduras, grelhas de ventilação, molduras), e um outro que abrange convenções genéricas, banais ou regulares (telas, baralho de cartas, óculos, jornais diários, uma parede, o tom de verde chroma key[i]). O conteúdo das classes assinaladas entrecruza-se, como se pode verificar, mas interessa-me forçar essa distinção entre naturezas tão próximas, porque penso que as suas representações ainda que diversas revelam uma taxionomia comum. Vejamos. Uma cadeira, uma fechadura, uma moldura – genérica, banal, regular – são arquétipos sobre os quais nós participamos de um modo imediato. Temos tão interiorizada a sua funcionalidade e o seu modo de utilização que não precisamos de o concretizar, para nos colocarmos em relação com estes. O mesmo sucede com as áreas que uma tela vazia, que a visão de um óculo ou que um baralho de cartas definem: numa tela sabemos encontrar uma superfície pictórica, se se trata de um óculo de vigilância, sabemos adivinhar o campo de visão que lhe corresponde, a distribuição de um baralho de cartas de jogo é de imediato percepcionada como uma área de inevitável casualidade e preceito. Finalmente, a aplicação do verde chroma sobre diferentes objectos e superfícies é paradigmática da operação que o artista, a obra, desencadeia no observador. A sua essência (sem qualidade ou propriedade) permite ser preenchida e nela reconhecer-se características, valores ou funções específicas – numa situação ad eternum em aberto, em incompletude, em partilha. Os paradigmas com que LPC lida poder-se-iam localizar próximos da noção de signo – objectos que nos convocam ideias – e em progressivo distanciamento da noção de símbolo – imagens que significam ideias.

Na exposição, Palavras Essenciais, somos introduzidos à sua gramática, ao seu léxico, que nos coloca, em simultâneo, num estado de decepção (temos que deixar cair por terra determinadas crenças) e de inclusão (deixar-nos guiar sob a influência de…). As regras do jogo são reconsideradas. O objecto e o seu duplo são um mesmo (os objectos e superfícies são replicados sobre eles próprios) à semelhança do modo como o observador complementa a obra (estamos sempre em posição de (re)produzir o seu trabalho). São duas acepções que se afiguram como configurações vertiginosas: a ideia de um corpo-sem-sombra, o efeito de mise en abyme ou a impressão de um pesadelo.[ii] A nossa vivência com o conjunto de peças que LPC apresenta no piso -1 da Appleton Square, surge-se-nos próximo da experiência de um sonho. As obras realizadas entre 2005 e 2010 envolvem arquétipos das referidas famílias – objectos e convenções genéricas, banais ou regulares – cada um, coberto por ele próprio. Primeira estranheza: parecem ser o que são, mas de facto são-no duas vezes. Mas é, precisamente, na observação desta segunda-camada-de-cada-um-próprio, aplicada laboriosamente por LPC, que o espaço à dúvida (ou o nosso despertar) é activado, apartando-nos daqueles objectos, que por momentos, na sua banalidade, nos armadilham. Mas, nessa distância, não nos sentimos defraudados porque participamos – e o rigor da disposição das peças no espaço expositivo é um elemento chave para esta integração do observador – por via da sua qualidade e propriedade pictórica.

A leitura da peça, Palavras Essenciais, exposta no piso térreo da galeria, poderá ser feita em estreita relação com as várias peças apresentadas no piso abaixo, como se estas funcionassem como notas de rodapé ou como um índice remissivo. Com isto não pretendo sugerir qualquer tipo de traçado hierárquico entre trabalhos. Entendo-o assim porque creio que a peça Palavras Essenciais[iii] introduz novas regras no sistema criado por LPC (e.g. nesta obra coexistem objectos pintados com objectos não intervencionados; nesta obra, o verde chroma é objecto e as palavras assumidamente convenções). E ainda que a peça esteja em permanente possibilidade de reconfiguração, crescimento e complemento, na situação actual poder-se-ão estabelecer vínculos com as obras congregadas nesta exposição. Proponho alguns desses enlaces. O primeiro, relaciona-se com a utilização da arquitectura do espaço – uma porta na parede[iv], vice-versa[v] e Reasons for Travelling[vi] são peças desenhadas a partir da nossa percepção (banal, genérica, regular) daquilo que pode acontecer numa parede. Em Palavras Essenciais a parede é suprimida e assumida, em simultâneo, é elidida quando totalmente coberta por uma grelha de palavras e de momentos em suspenso, e é tornada presente quando deixada vazia. Esta ideia de interrupção (do preenchimento da parede, da eventual pausa de montagem da peça, ou da leitura pontuada pelo vazios verde chroma nos quais é possível adivinhar qualquer conteúdo) também é insinuada no aparente abandono das doze cadeiras dispostas em círculo na peça verdades e mentiras (intervalo)[vii]. A disposição expositiva patente propõe, ainda, diferentes ópticas de leitura: a imersão num texto impossível, a projecção das nossas palavras essenciais nos espaços cobertos por verde chroma, a indeterminação sobre a natureza dos vários elementos que compõem a peça (aqui a chave poderá ser a dinâmica presente em Related to the body[viii]: o que é exposto sobre um plinto é acrescido de um entendimento estético). Estas diferentes perspectivas são delineadas em articulação com o protocolo do nosso movimentar num determinado espaço. De um determinado ângulo contemplamos uma superfície que preenche o nosso olhar, do ângulo oposto é-nos revelado o termo desse eixo de continuidade, de um terceiro ponto é-nos proposta a observação sobre uma zona de divisa, etc.

Ponto de vista[ix] sintetiza este exercício entre a posição do corpo, do olhar, e tudo aquilo que nos rodeia.

A proposta de Luís Paulo Costa é económica. As suas coordenadas são mínimas. Adverte para determinados pontos de vista, induz para uma indefinida possibilidade de projecções, propõe um segundo olhar sobre tudo aquilo que disfarça não ter qualidade ou propriedade. Mas nesta subtil mediação somos implicados no desenhar da linha de fronteira entre tudo o que é genérico, banal, regular e o que podemos classificar de arte, sonho, imaginação.

Lisboa, Junho de 2010
Maria do Mar Fazenda

[i] O tom de verde chroma key é uma tinta normalmente utilizada para cobrir fundos de filmagens que em pós-produção são substituídos por imagens fixas ou em movimento. O artista apropria-se desta convenção em vários trabalhos anteriores: It can be anything (landscape), 2007. Verde chroma s/ tela e acrílico s/ banco de madeira; The Full Picture, 2007. Verde chroma s/ tela e acrílico s/ livro e cadeira; Play alone or with others, 2009. Verde chroma s/ tela e acrílico s/ baralho de cartas; News, 2009. Verde chroma e acrílico s/ jornais diários. E agora, em Palavras Essenciais, 2008-2010, algumas das folhas A4 são cobertas com a mesma tinta.
[ii] Pesadelo 1: Estou a fazer um puzzle. Retiro de uma caixa, totalmente branca, no seu interior e exterior, as peças que virão a perfazer o puzzle. Cada peça é branca de ambos os lados. Pesadelo 2: Saio à rua para comprar o jornal do dia. Compro o “Der Spiegel” (O Espelho). Todos os títulos, as colunas de texto, as imagens, à excepção do logótipo “Der Spiegel”, estão totalmente elididos, cobertas por verde chroma.

Ficções de sonhos entrecruzados com as peças de LPC: White Puzzle, 2005. Acrílico s/ peças de puzzle e caixa de cartão e News, 2009. Verde chroma e acrílico s/jornais diários, respectivamente.
[iii] Palavras Essenciais, 2008-2010: Largas centenas de palavras foram impressas a preto, cada uma, numa folha de papel A4 branca. Cada folha foi, posteriormente, pintada de branco. A palavra ressurge, na folha, com a pintura a preto de cada uma das letras que a compõem. O original (o arquétipo) e a pintura (o artefacto) são sobrepostos no mesmo objecto. Em número bastante mais reduzido e de modo aleatório são introduzidas folhas A4 cobertas de verde chroma nas caixas que armazenam as palavras essenciais.

A sua primeira configuração expositiva, agora patente no espaço da Appleton Square, cobre grande parte da área de parede da galeria. As caixas que condicionavam as folhas, assim como algumas caixas que não chegaram a ser abertas, são deixadas no espaço. Perto das caixas são também deixados alguns materiais de montagem: fita métrica, lápis, agrafador, nível, etc. Alguns destes objectos são pintados sobre eles próprios, outros não.
[iv] Uma porta na parede, 2007-2010: Na parede da galeria é colocada uma fechadura e uma chave, adjacente a estes elementos é traçada uma linha vertical na parede.
[v] Vice-Versa, 2005: Tomando como referência a altura de uma tomada eléctrica (reparar no enorme número de tomadas existentes na galeria) é colocada uma pequena grelha de ventilação. A área de parede que a grelha cobre é pintada de preto: a dualidade interior-exterior é suprimida.
[vi] Reasons for Travelling, 2006: Uma moldura que delimita parte daquilo que a extravasa.
[vii] verdades e mentiras (intervalo), 2010: Doze cadeiras standard são dispostas, mais ou menos regularmente, em círculo como se organizadas para uma reunião ou um encontro.
[viii] Related to the body, 2010: Uma pastilha elástica mascada e pintada é apresentada sobre um plinto.
[ix] Ponto de vista, 2010: Uma moldura congela a deformação material produzida pela ilusão óptica.

HCI / Colecção Maria e Armando Cabral / / /