Marianna Gomes — BOLLOCKS

Conta a lenda que, num desabafo face às adversas condições financeiras que afectavam a indústria cinematográfica norte-americana no início da década de 1930, um colaborador do produtor Jed Buell terá exclamado: “se nos continuarmos a afundar nesta depressão, em breve teremos de nos restringir a trabalhar com actores anões.” O que terá levado Buell a acolher aquele comentário e a transformá-lo no mote para The Terror of Tiny Town – único musical western da história com um elenco formado exclusivamente por anões – é algo que dificilmente tem cabimento nas nossas mentes ditas pós-capitalistas. O contraste entre os esforços financeiros e operativos implicados em tão excêntrica obra cinematográfica, e as pífias hipóteses de dela retirar qualquer retorno crítico ou comercial, torná-la-iam hoje num delírio fugaz na mente

do mais aventureiro dos cineastas. Que Buell tenha investido a sua energia e as suas finanças na prossecução deste projecto é uma herança simbólica muito menos despicienda do que o lugar que este filme ocupa na nossa memória cultural colectiva; que Mariana Gomes lhe devote uma atenção de culto – bem como a uma imensidão de outras produções de série b nas áreas do cinema, da literatura ou da música – é uma pista clara sobre o modo como se posiciona face (como se costuma dizer) “aos desafios que a contemporaneidade artística lhe coloca”.

Costuma dizer-se também que o grande desafio da contemporaneidade para quem trabalha na

área da pintura já não é saber como pintar, mas antes o que pintar. Mariana Gomes não parece

sofrer dessa angústia. E julgo que tal não acontece porque o volume de imagens e associações

visuais que a sua imaginação debita não permite sequer hesitações. Como num fluxo contínuo

e despreocupado, esta torrente passa da imaginação à superfície do papel ou da tela, por vezes

ao corpo de uma escultura, com uma urgência que não se compadece com preparações, projectos prévios ou planos de pormenor. Trata-se, habitualmente, de imagens desconcertantes, entre o figurativo e o abstracto, ora feéricas, ora neutras, mas raramente dóceis, apaziguadas ou prazenteiras. A compostura não é um dos seus atributos. Pelo contrário, a artista explora uma evidente atracção pelo bizarro, pelo grotesco, pelo disforme e pelo escatológico, exercitando com afinco a busca por um resultado formal que se situa sempre nas imediações da displicência. Na eventualidade da sua imaginação se esgotar, Mariana Gomes socorre-se de uma inesperada solução de recurso: a realidade quotidiana. Em particular, a paisagem humana que a rodeia. Não obstante, e contra todas as expectativas, esta entrada em cena da realidade não aligeira o carácter perturbador das obras. Nucas, dentes, dedos, esgares, contorções e expressões de desconforto, fazem parte de uma atenção selectiva que não se apega ao habitual, mas que também não cede propriamente ao absurdo.

E aqui reside, parece-me, uma das questões importantes a ter em conta quando nos debruçamos sobre o trabalho desta artista. Contrariamente ao filão de criadores (com Alfred Jarry certamente em lugar de pódio) cujo trabalho tomou o absurdo como método e como produto de uma crítica à versão positivista da realidade, Mariana Gomes não procura exercer uma crítica nem estabelecer uma contracorrente por via da extrapolação da normalidade ou da inversão dos códigos do senso comum. O seu objectivo também não passa por provocar o riso grosseiro ou suscitar a comicidade de que falava Henri Bergson. De modo bem distinto, as suas obras insistem em situar-se na faixa particularmente estreita de inteligibilidade que sobrevive entre o banal e o absurdo: um lugar povoado por objectos, conceitos e experiências que, fazendo

sentido, fazem-no, não por intermédio de uma inversão, mas por intermédio de um desvio face às convenções e aos regimes de expectativa que suscitam, face à seriedade e à gravidade da sua suposta condição solene, face ao eixo da história e do progresso em que automaticamente se inscrevem. Com efeito, trata-se de facilitar uma deformação calculada e circunscrita do real, de magnificar a sua face aturdida, de instalar um elemento disruptivo no seio da normalidade e esperar para ver o que acontece. Como produzir um western interpretado exclusivamente por anões. Ou conceber uma pintura implosiva, toda composta por fragmentos, excrescências e apêndices. Ou mesmo esboçar um micro retrato de família, feito das expressões neuróticas que nos acometem e denunciam, por breves instantes, todos os dias.

Bruno Marchand, Setembro 2016

 

credits © photodocumenta

HCI / Colecção Maria e Armando Cabral / / /