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Carla Cabanas — Álbum de Família

O que sobra do pó que resta

O fascínio de um céu de estrelas desperta um recolhimento contemplativo, um mergulho numa noite abissal mais profunda que o leito em que repousam os corpos cintilantes que seduzem o olhar, um sem-tempo insondável que concentra a universalidade de um antes-de-tudo e um depois-de-tudo, e induz a impressão nostálgica de uma ocorrência fugaz. Este céu é o modelo astral da impermanência diante do advento acidental e do ocaso fatal. Neste instante cósmico, tudo é nada mais que pó e forças colossais.

Este céu de estrelas é um espelho que devolve ao olhar contemplativo o seu próprio não-ser, a impossibilidade da permanência de um ser-no-mundo quotidiano entrelaçado pela força de um fio misterioso com os demais em hábitos, celebrações, e outros acontecimentos, e a consciência do seu ser-para-a-morte selado no nascer enquanto fenómeno da existência. Empenhada em salvar-se da evanescência e do esquecimento, esta consciência da erosão no tempo que passa, do instante da existência, acende a pulsão em lembrar e ser lembrado.

Explorando a fotografia da privacidade como prática, suporte ou material, e a sua metamorfose pela combinação com outras disciplinas artísticas, todo o trabalho de Carla Cabanas sobre identidade e pertença enraizadas na memória de um tempo ido e íntimo, e sobre o anseio de perpetuidade de um legado, move-se, no gesto só de um jogo de espelhos, num campo que envolve o fixo e o volúvel. Entre os espelhos, a poesia visual de Carla Cabanas dá a ver, afinal, que o trivial é precioso, que o mundano é transcendente.

A expressão destas ideias é familiar entre Álbum de família e a obra em vídeo In an infinite blow – Her family album (2021). Sobre um fundo negro, Carla Cabanas salpica uma miríade de retalhos de fotografias destroçadas, sem qualquer referência a nomes, lugares e datas. Manchas de cor apenas, as pequenas partículas de luz e calor serão pó da memória, o que resta de outras estrelas que brilharam no céu da vida de alguém – o observador, também? –, só na noite imensa, no tempo desconcertante da lembrança. Se a cinematografia em In an infinite blow Her family album (2021) propõe uma travessia por estes resquícios, a macicez imóvel de Álbum de família sugere a sua sedimentação em estratos sucessivos na espessura da obra.

Em Álbum de família, Carla Cabanas adopta um desvio face a trabalhos anteriores, não se debruçando sobre a performance de quem posa, o olhar de quem capta, o enredo de um conto de intermitências, a sua rememoração sob outros olhos, que tornam o álbum de fotografias de família num depósito de vislumbres turvos e murmúrios vagos, de ficções sobre ficções, uma ressonância fragmentada e inverosímil. O fervor da memória de cada momento e da vida, do lembrar e ser lembrado, é sempre reencontro delirante e perda irremediável. É com este fracasso que Carla Cabanas trabalha, ferindo, e destruindo, a fotografia, roendo o fio do tempo, moendo a memória. O que sobra, depois da memória em ruína, do tempo em suspensão, não é o que resta. Com o pó do que nasce e morre, do que passa, Carla Cabanas funde reminiscências do acontecimento da vida e das estrelas em minúsculos recortes de fotografias que inscreve num céu novo, construindo ficções, desprendendo uma outra estória, que poderá tornar claro o indistinto, próximo o longínquo, universal o individual, abrindo a janela da imaginação para transformar o que foi no que poderá ser.

Ricardo Escarduça

 

Álbum de Família, 2022

Fotografias a cores, Resina Epoxy sobre placa Alucobond

150x268x5,5 cm

 

Com o apoio técnico de João Rapaz (OldSkull Fx).

ÁLBUM DE FAMÍLIA tem o apoio do Programa Garantir Cultura da República Portuguesa e Santos & Elvas, Lda.

Mecenas: HCI; Colecção Maria e Armando Cabral

crediots © bruno lopes

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