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João Pedro Fonseca e Manuel Bogalheiro
Anatomia da extinção

Não era propriamente o habitat natural mais complexo. A partir de origens bem modestas – um sulco feito por pneus de camiões – uma poça de água tinha-se transformado num pequeno lago graças às chuvas. Alguns animais tinham-se ali instalado: caracóis, pequenos lagartos, borboletas e libelinhas. Também se viam já ovas de peixes na água e alguns peixinhos, bem como girinos e alguns insectos aquáticos. Ervas daninhas tinham crescido em seu redor, impedindo a erosão do solo. A esse pequeno lago chegavam agora pássaros em migração.

O tipo de vigilância destes animais era diferente do que era comum nos que viviam em zonas verdadeiramente selvagens: era um vigência tingida de fadiga, o resultado de a longa e penosa história de maus encontros naquele território ocupado por humanos, de acontecimentos trágicos no seu passado.

Nas visitas noturnas, aquele bocado de natureza fornecia-nos uma série de dramas em miniatura para ir seguindo no futuro próximo.

Havia milhares de espaços mortos como aquele micro habitat, milhares de ambientes transicionais que ninguém observava com atenção, que tinham ficado invisíveis porque careciam de qualquer utilidade. Qualquer coisa podia habitá-los durante um certo tempo, sem que ninguém se apercebesse.

Nessa altura já sabíamos que a fronteira estava a avançar.

Antes víamos a fronteira como uma muralha monolítica e invisível. Percebemos depois que a fronteira, avançando indiscernivelmente a cada décimo de segundo, estava a colonizar tudo o que tocava com a centelha do seu poder transformador. Que rasto da nossa presença poderia restar depois de a fronteira nos atingir? Que novo espectador poderia surgir para, depois da extinção, observar os vestígios dos nossos dramas como se de um habitat – morto e perdido no tempo – se tratasse?

Manuel Bogalheiro

Criação de João Pedro Fonseca
Performance e cenografia: João Pedro Fonseca
Sonoplastia: Manuel Bogalheiro

créditos © appleton associação cultural

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