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Leka Mendes — Circum-navegação

Em colaboração com Projeto Fidalga /Residência Paulo Reis Residência de Criação Artística

Conversa entre a artista Leka Mendes e Vera Appleton sobre “Circum-navegação”, setembro 2023

Vera Appleton: Comecemos esta nossa “viagem” pelo título que escolheste para a tua exposição: Circum-navegação. Disseste-me que te fascina todo esse contexto da chamada “Era das Grandes Navegações”, do facto de se aventurarem sem meios para encontrar terra, ouro, especiarias. É um assunto que te atrai: o mar, o céu, o horizonte, as estrelas, a luz, a noite. Tudo isto se liga a essas grandes viagens, são elementos que as contextualizam. Sendo assim o que nasce antes? O título ou a exposição?

Leka Mendes: Nem sempre o título vem antes, mas dessa vez e na minha última exposição os títulos nasceram primeiro. Claro que tem sempre uma pesquisa em que estou envolvida ou lendo alguma coisa que me faz ficar com algumas palavras ou frases na cabeça e depois vou desenvolvendo a ideia. Na exposição que fiz em São Paulo estava pesquisando o Alexander von Humboldt e o título era uma frase dele. Dessa vez ao pensar em Brasil – Portugal, o primeiro pensamento foram os navegadores, acho que não tem muito como fugir disso. Todas essas personagens me fascinam, os navegadores, aventureiros, naturalistas, sempre estiveram presentes nas minhas pesquisas. Lendo sobre Fernão de Magalhães achei que esse termo, circum-navegação, fazia muito sentido com meu processo de produção, dessa travessia, ora em longos trechos de viagens, ora ao caminhar pela cidade.

VA: Não resisto a deixar aqui um poema de Fernando Pessoa que nos liga aos grandes navegadores dessa época, e também ao Brasil, imortalizado através de “Argonautas” de Caetano, ideia de Bethânia e interpretação de Gal:

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
‘Navegar é preciso; viver não é preciso.’
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. 

Leka, separa-nos ‘tanto mar’, e no entanto, estamos tão próximos, “navegar é preciso”?

LM: Sim, sempre, pelo menos para mim. No modo que eu trabalho/penso, estou sempre navegando/caminhando até outras formas de navegar. Talvez essa nossa proximidade é o que nos faz navegar juntos, como acontece agora com essa parceria Appleton e Fidalga, onde acontece intercâmbios de artistas e mesmo nesse cruzamento de oceanos onde estamos sempre juntos. Considero que minha formação artística foi no Fidalga com a Sandra Cinto e o Albano Afonso e aprendi com eles que o caminhar/navegar é melhor quando estamos juntos. Acho que acontece com a maioria dos residentes que passam por lá e se agregam ao grupo, como vários amigos portugueses que conheci ali.

VA: Como há pouco referiste, uma das tuas travessias pode ser um simples passeio pela cidade. És uma artista que encontra poesia no lugar mais inusitado. Ou que transforma em poesia o objecto banal do quotidiano dessa cidade. Transportas-nos claro para os famosos ´ready-made´ que exploras de variadas formas já que tanto os utilizas como partes de obras, como para se transformarem na obra em si mesma, concordas?

LM: Acho que foi acontecendo de duas maneiras diferentes, tanto pela pesquisa com o processo fotográfico, como quanto mais eu estudava sobre o antropoceno (a interferência do ser humano na geologia da Terra) e tantas questões sobre o ser humano e o meio ambiente, esses materiais foram entrando cada vez mais, as vezes como objeto, outras como suporte e também como matriz.

Tem o ´ready-made´, mas acho que tem muito da ´arte povera´ e ´land art´. Eu sempre fiz essas travessias. Antes eu fazia mais viagens de carro com longas distâncias e sempre em lugares com um certo “turismo geológico”, então atravessava de Santiago (Chile) até Atacama, ou de Salta (Argentina) até o Atacama, São Paulo – Cabo Polônio (Uruguai), Islândia , entre outras, e criava a partir do percurso e da coleta que fazia – primeiro era muita pedra, folhas, terra, e também fotografava, às vezes fazia alguma instalação ao longo do caminho. Depois comecei a coletar artigos de jornais antigos, fotos antigas, postais. Nessa época que outros elementos começam a entrar eu comecei a prática de ateliê e com isso o meu processo foi mudando. Comecei a coletar coisas na rua no caminho para o ateliê, e do natural fui mudando a coleta para o “natural industrializado”, destroços de construção civil como algumas pedras brasileiras, mármores, ferro. Com o tempo outros materiais foram entrando, como descartes plásticos, têxteis e eletrônicos.

Acho que esse trecho do texto da Ana Roman (curadora da minha mais recente individual na Marli Matsumoto) diz bem sobre isso: “A artista coleta fragmentos produzidos pela atividade humana nesta era: resíduos urbano-industrial-tecnológicos são seus achados, concentrando-se no potencial de criação de especulação que guardam todos os objetos do mundo. Para Leka, não há arranjo ou imagem predeterminados, mas uma escuta atenta às formas e às narrativas encontradas pelo meio do caminho. Ocupa-se com aquilo que é mais que humano e com a memória que está nas plantas, pedras e nos objetos que nos cercam. Criam-se, nos trabalhos da artista, ecologias do nosso entorno.”

VA: O teu olhar é sempre o mesmo, em que tudo é pretexto para inspiração e criação, ou és capaz de percorrer a natureza e especialmente o urbano do teu quotidiano com os teus sentidos mais adormecidos?

LM: Difícil separar, acho que minha percepção vem do modo como vivo e penso sobre estar no mundo, como é minha relação com a natureza, com o olhar a cidade, as construções, o habitar, os hábitos, o cotidiano, o alimento, o descarte, o lixo… procuro ver sempre tudo como um todo, tudo está ligado. Acho que minha prática de yoga desde adolescente e toda a filosofia que vem junto me faz ter essa presença nos momentos, atenção ao presente. O filósofo Emanuele Coccia tem esse pensamento do todo, dos ciclos, acho que por isso é muito importante na minha pesquisa.

Claro que sempre temos sentidos mais adormecidos que outros, mas que acabam fazendo parte de alguma maneira. Eu pensei que talvez o paladar fosse meu sentido mais adormecido, mas o alimento é presente também no meu trabalho, as vezes como forma (carimbo com tinta sobre papel) e as vezes como cor (tingindo os tecidos). Também me veio o termo ´pratyāhāra´. ´Ahára´ significa comida, ou algo que você coloca para dentro, e ´parti´ é uma preposição que significa contra ou fora. ´Pratyáhára´ então significa controle do ´ahāra´, ou ter controle sobre as influências externas. E também é uma transição entre as duas esferas, o físico e o mental, a transição entre a prática física e a meditação. Acho que é o que acontece entre a travessia e a prática de ateliê.

VA: Nesse “olhar a cidade” encontras a Arquitectura, uma disciplina importante para ti. Como te relacionas com ela? Viver numa cidade como São Paulo é mais estimulante (no bom ou mau sentido) para quem a aprecia?

LM: Arquitetura é muito importante na vida, nem todos entendem a importância, mas ela dita a forma que vivemos, desde o abrigo que nos acolhe até a altura da pia da cozinha, ou a localização de tomadas, interruptores… todo detalhe importa, é a partir disso que seu corpo interage com o espaço que ocupa. Tanto que larguei no meio o curso de arquitetura, tamanha era a responsabilidade sobre a vida dos outros – sentia que não podia decidir como os outros viveriam nesses espaços. Mas nunca deixou de ser importante no meu olhar, e São Paulo, sendo essa cidade que é uma tremenda bagunça, uma relação de amor e ódio constante, gera muitos estímulos. Voltando à pergunta anterior, mexe com todos nossos sentidos. O caminhar por São Paulo é uma experiência, e com certeza é uma cidade que me dá muito material para criação. Tem um lado da beleza em toda essa falta de planeamento urbano, essa falta me alimenta, mas tem um lado muito triste de não conservar nossa memória, casas, quarteirões, e bairros quase inteiros que são demolidos para novos empreendimentos enormes e sem muita coerência com o entorno, onde todo nosso horizonte também vai sumindo.

VA: Vamos recuar à tua génese, a tua ligação e relação com a fotografia. És fotógrafa profissional e no entanto, já me disseste que, quando entras no campo das artes visuais, o que te interessa deixa de ser a fotografia e passa a ser o seu processo. Explica-nos então como foi acontecendo esta mudança na forma de olhar e utilizar a fotografia.

LM: Apesar do trabalho comercial com as fotos, acho que trabalhar com técnica me dá mais vontade de soltar essa parte. Sempre tive uma produção autoral de experimentação, tanto de mexer nas câmeras, nos filmes, e sempre me interessou esse período da invenção da fotografia, dos naturalistas que saíam para capturar essas novas imagens, os processos para capturar a luz. Quando entrei nas artes visuais vi que esse processo poderia ser muito mais amplo. Comecei a me apropriar de imagens já feitas, também não me interessava criar um ensaio fotográfico, nem uma bela imagem com a luz certa, isso tudo já está no mundo, assim como os materiais que coleto hoje em dia. Depois experimentei suportes, formas de transferir uma imagem para a superfície, formas de revelar a imagem, formas de capturar a imagem.

VA: Diria que és uma artista experimental, de muita intuição, e uma grande dose de espontaneidade, mas ao mesmo tempo com uma obra cheia de camadas, muitas vezes subtis, concordas? Consegues falar um pouco sobre o teu processo de trabalho? Ou até que ponto o processo é o trabalho?

LM: O processo é o mais importante, eu amo o processo e não sei se gosto de finalizar a obra. É sempre uma questão esses ajustes finais e eu adoro ir transformando as peças, deixo pendurada no ateliê e muitas vezes destruo a peça feita para virar outra ou vou alterando, e é essa vontade que tenho com toda exposição. Conforme vamos montando, já quero ir mudando, mas sei que isso são processos e questões para se levar para a próxima. Na hora de produzir eu sou bastante intuitiva e espontânea, mas sou muito racional antes, muita pesquisa, muita leitura, vou criando métodos e sistemas e quando chega no ateliê eu sei mais ou menos o que quero, tenho uma história na cabeça para contar. Acho que por isso é um trabalho com tantas camadas, as questões vão se acumulando, e como disse antes, o que não foi resolvido em uma exposição, fica para a próxima, e assim acho que todos os meus trabalhos são interligados, e poderiam ser uma grande série, por mais que materiais e linguagens sejam diferentes. Eu tenho me desprender desse lado racional, mas é difícil, isso acaba acontecendo durante o processo ou a montagem. Talvez que por isso o processo é o mais prazeroso, tenho minha história na cabeça e vou desdobrando a partir do que vai sendo construído no ateliê, com todos os erros que nos levam para outra direção, e todo o acaso que possa acontecer.

VA: Em “Circum-navegação” encontramos os já habituais panos/tecidos que recortas, reconstróis, manipulas e transformas em desenhos-escultura. De que forma estas peças se ligam ao que és como artista ou podem até contar um pouco da tua história?

LM: Comecei a trabalhar com tecido quando fui fazer os primeiros carimbos com os entulhos, achei que o tecido seria melhor que o papel por não amassar e rasgar, e foi uma grata surpresa essa material. Tem uma diversidade de modos de usar os tecidos, e me resolvia o lado de fornecedor para os suportes – podia eu mesma finalizar as peças costurando, pendurando, inventando suportes, esticando na chassis. Esse material me abriu muito o pensamento do trabalho, usando suportes diferentes, minhas coletas foram para um lugar diferente também, onde olhei para peças maiores que poderia usar como alguma estrutura para as peças têxteis, como material de descarte de lojas, supermercados e ferro-velho. O que me incomodava era comprar o tecido, achava que não tinha sentido já que o processo têxtil não é o mais ecológico, e assim tentava comprar sobras de lojas de tecidos. Algumas marcas se interessavam em doar as sobras para mim, mas isso nunca chegava a acontecer, até que chegou um novo vizinho de ateliê, designer, ofereceu-se para doar as sobras das lonas – ali funciona uma fábrica de mobiliário – e foi um mundo que se abriu com esse material. Sigo utilizando esse material, faço colagens com os pedaços de lona, tento sempre manter o desenho lá encontrado, sem fazer cortes na peça, e ela é bem resistente à lixivia, o material que uso na maioria das vezes para interferir na peça e fazer desenhos. Nos últimos meses comecei a misturar a lixívia com pigmentos. Trouxe algumas bases prontas de São Paulo, e finalizei as peças aqui.

VA: O teu vídeo é uma peça central da exposição, embora não lhe dês esse destaque. É como se fosse um resumo do que fomos falando – o teu fascínio pelo processo fotográfico que nasce do contraste entre luz e escuridão, a alusão a um céu estrelado, ao cosmos, que na verdade é resultado de uma experiência com um objecto bem terreno, e por fim o som a relacionar-nos com o mar. Como nasce esta ideia? Foi complicada a execução?

LM:  Quando recebi o convite do Fidalga para fazer a residência já comecei a pensar no que poderia ser feito, e me veio essa relação com os navegantes, o oceano a se cruzar. Primeiro, pensei em trabalhar com 2 vídeos fazendo um corredor com uma projeção de cada lado, dando essa ideia de escuridão, do mar e do céu. Como sabia da possibilidade da sala ficar bem escura, queria dar essa sensação de se lançar ao mar sem enxergar a sala até os olhos se acostumarem com a escuridão. Li muito sobre os navegadores, e achei bonito um trecho que dizia que os primeiros navegantes não se afastavam da terra sem saber direito para onde iam, se poderiam cair da borda. Mais tarde, os mais corajosos, se lançavam ao mar sem terra a vista. Achei essa situação parecida com quem vai fazer residência e exposição em um país estrangeiro – não levar uma exposição pronta. Por outro lado queria ter um pouco de segurança e trazer trabalhos para montar a exposição. Como tenho a prática da coleta, e sem saber o que iria encontrar, me sentia insegura de vir sem nada pronto.

A exposição no Paço das Artes em São Paulo, 2022, tinha como umas das referências o livro “A queda do céu” de Davi Kopenawa, onde resumindo muito o livro, ela conta que na mitologia indígena dizem, que se o ser humano não parar de destruir a Terra, os espíritos protetores vão embora, e não terá mais quem sustente o céu, seria o fim da vida. Nessa exposição produzi suportes para sustentar os céus que criei, e uma das peças era uma lata com um olho mágico que simulava um planetário. E foi o cenário estrelado para este vídeo em “Circum-navegação”, já era uma vontade fazer isso. Uma das coisas que mais amo na fotografia é a mentira, tanto pela edição, pelo corte, pela situação ou por qualquer outro motivo. E ao fazer os primeiros vídeos entendi que ali eu tinha minha queda do céu, já não podia mais sustentá-lo por muito tempo se movesse a fonte de luz.

A partir daí fui criando uma navegação dentro da sala, uma parte que considero a terra à vista, onde trouxe um pouco da produção do que estava fazendo, o lado mais claro da sala, e o lado escuro, o lado que me lanço ao mar, que além do vídeo, tem peças produzidas na residência, nas minhas circum-navegações pelo bairro de Alvalade coletando todas as pedras soltas no caminho.

O vídeo do mar acabou não entrando, só ficou o som dele, que acho que ajuda muito para a narrativa da exposição, e o faz presente. O céu é dos maiores mistérios da humanidade, e por muito tempo foi o guia para muitos navegantes e exploradores, mas hoje em dia, como se guiar pelo céu se ele está em queda?

creditos © pedro tropa

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