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Luísa Salvador — Lago

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados, dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.

Russel Edson (Tradução de José Alberto Oliveira)

Invocação do Lago

Se olhares muito para um lago ele acaba por olhar para ti.

Querida Luísa,

Durante uns anos a minha avó, mãe da minha mãe, teve uma florista de bairro. As memórias que guardo são turvas mas recordo o enorme amor que as mãos da minha avó, àquela época ainda não demasiado afectadas pelas artroses, depositavam nos arranjos de flores e nas combinações singulares. Percebi anos mais tarde que a ousadia da minha mãe em justapor na sua roupa o vermelho e o rosa, o azul e o preto, o violeta e o magenta, tinham raízes na desenvoltura com que a minha avó unia cravos rosa a cristas de galo, dálias carmim a gladiolos amarelos, miosótis azulados e physalis laranja. Na florista de esquina de Setúbal, a minha avó ordenava o mundo com a intuição de quem está em comunhão com uma ordem superior.

Mas talvez aquilo que mais estivesse em contacto com uma ordem transcendente era o rigor e a delicadeza com que a minha avó se dedicava a cobrir santos, santas e outras divindades que eu desconhecia com talha dourada. Nesses dias as mãos da minha avó deixavam de ter artroses e manejavam os pincéis e a frágil folha de ouro com uma solenidade própria do ritual que os nossos olhos testemunhavam. Cobrir alguma coisa com ouro era dar-lhes uma existência que ficava acima da terra, a flutuar acima do chão e por cima de nós. Eu não percebia a relação com o divino e com Deus que a minha avó me dizia viver no céu, e eu no céu só via as nuvens e os pássaros, e se era para acreditar em alguma coisa, então eu estava do lado dos pássaros. Mas percebia que quando a talha dourada entrava em cena e cobria o que quer que fosse, as coisas passavam a emanar luz. E na luz, eu também acreditava.

Houve um dia em que a minha avó me ensinou a usar a talha dourada: juntas escolhemos uma folha que já não servia aos arranjos e bouquets que saíam da florista porque já não tinha vida e as floristas vendem a ilusão de que a vida está sempre nas suas montras. Quase sem respirar a minha avó colocou a folha de ouro sobre a folha morta e com o cuidado dos mestres ensinou-me a pentear o ouro sobre aquela natureza morta. Lembro-me de pensar que a minha avó tinha dentro dela a capacidade de trazer os mortos à vida, porque aquela folha emanava luz e na minha cabeça de criança só as coisas vivas podiam ter luz. Entre mim e a minha avó gerava-se um culto aos olhos e à forma como a luz entrava por nós adentro.

Olha, Luísa, é Outono! Estação em que, todos os anos, as árvores morrem um bocadinho. A sabedoria das árvores faz com que saibam que não devem morrer tudo de uma vez. Por isso, todos os Outonos, enfrentam a morte, sacrificando as suas folhas que, com graciosidade, caem por terra. Mas a forma como as árvores entregam as folhas à morte é sempre encarada com beleza. Pois a morte das folhas passa sempre por essa metamorfose de cores que, iludindo-nos, nos deixa a pensar mais nas vitrines das floristas do que no fim da vida. Se calhar a beleza foi criada para lutar contra a morte.

Trazer um lago desde Castelo do Bode até Lisboa em Novembro é também lutar contra a morte porque é necessariamente trazer tudo aquilo que envolve (ou já envolveu) este lago: as árvores, as folhas, a terra e a memória de um fogo que ardeu tudo o que existia à volta do lago, impossibilitando que o Outono tivesse a oportunidade de fazer a sua oferenda anual à morte. O fogo é mais forte que o Outono. Mas as mãos são mais fortes que o fogo.

Uma vez uma mulher encontrou duas folhas de papel e nelas invocou as folhas de um terreno que tinha ardido e entrou em casa colocando-as em cima dos olhos fechados, dizendo aos pais que era a memória de um lago. Ao que eles disseram então vai para a rua e não te lembres de tudo na sala pois as tuas memórias podem inundar-nos a casa e os olhos. Ela disse eu estava a brincar não sou a memória de um lago e deixou cair as folhas. Mas os pais disseram olha tudo ardeu.

As folhas que a mulher deixou cair no chão reluziram de imediato porque tinham em si a invocação da memória, das estações do ano e a enorme capacidade que vive nas mãos dos artistas e das crianças de iludir a morte e de reordenar o tempo. Tal como, em tempos, as mãos da minha avó cobriram de ouro aquilo que estava inanimado, as folhas que saíram das tuas mãos foram cobertas por essa matéria capaz de reflectir a luz, ficando nesse sítio entre a vida e a morte, entre a realidade e a ficção onde se calhar habitam também todos os artistas.

Desde o início da relação do Homem com os metais que algumas destas matérias ganharam um lugar primordial na sua relação com aquilo que não entendiam. O ouro, metal brilhante, como um sol que vem de debaixo da terra, é desde há muito associado a essa esfera divina para muitas das religiões que existiram antes e depois da cristã. O brilho do ouro, a sua natureza indestrutível e a sua relativa escassez tornaram-no num material ideal para incorporar qualidades divinas. O ouro foi o metal apropriado para se dirigir aos deuses. E a avó Helena e a sua talha dourada sempre souberam disso.

Acredita-se que o ouro e a sua delicadeza foram o primeiro momento onde humanos se apaixonaram por um metal. Mas o ouro, qual amante demasiado maleável, macio e fugaz, era impraticável para o uso diário e para as necessidades humanas que não passavam só por olhar para o céu e adorar o que não entendiam. O cobre foi o segundo arrebatamento da humanidade por um metal. A natureza populosa do cobre, o seu estado de pureza, a sua estrutura resistente deram aos antigos a segurança que a natureza demasiado divina do ouro não lhes dera até à data. Os Sumérios e os Caldeus, habitantes da antiga Mesopotâmia, terão sido os primeiros a cobrirem as suas vidas de cobre através da criação de pontas de flechas, arpões, vasos, jarros ou cinzéis. O seu conhecimento foi passado aos antigos egípcios que criaram enxadas, foices, pratos, serras e facas.

Mas cedo os egípcios perceberam que um metal tão generoso e belo não podia ser apenas utilizado para as primeiras necessidades do dia-a-dia. A procura pela beleza fez com que os egípcios vissem no cobre a possibilidade de se espelharem a si mesmos, criando os primeiros espelhos em cobre e estanho. O cobre estava tão próximo dos egípcios, respondendo a tantas urgências, que não foi descabido pensarem que talvez esta matéria os colocasse em contacto com aqueles que já não habitavam o mundo dos vivos. Desta forma, o símbolo que os egípcios atribuiriam ao cobre foi o Ankh, símbolo da vida eterna e da vida após a morte. O ouro falava com os deuses. Mas os humanos não tinham saudades de Deus. Mas sim dos seus mortos. O cobre falava com os mortos. 

As folhas de papel que a mulher utilizou foram cobertas de vários verdes. E sabendo ela que aquelas folhas eram uma invocação dos mortos, cobriu-as de cobre e de Outono. E quando a luz bateu nas folhas, viu não só a luz que estas emanavam, mas também o seu reflexo.

Conta-se que o primeiro espelho foi formado nos Himalaias quando um rio decidiu parar para descansar e reflectir sobre o curso que tomava. Enquanto estava estagnado, uma mulher que passava olhou para o pequeno lago que se tinha formado e foi surpreendida por outra mulher que a olhava desde as profundezas. Os espelhos existem desde o momento em que os olhos da primeira criatura se encontraram com o seu reflexo numa superfície de água. E talvez a superfície mais propícia tenha sido um lago. Porque na sua forma e nas suas águas escuras, os lagos espelhavam muito mais do que um rosto: na imagem reflectida viviam todas as questões, todas as angústias e todos os segredos. Mas sobretudo vivia o desconhecido. E no desconhecido vivia tudo aquilo que não era explicado. Talvez não seja por acaso que tão rapidamente os lagos tenham sido povoados pelos monstros que viviam nos nossos mais profundos medos.

Muitas vezes passei férias em Montargil. Da casa onde ficávamos víamos todos os dias a barragem a mudar e no espelho que criava víamos o humor do céu. Uma vez o meu primo Tiago disse-me “não és capaz de passar a barragem de um lado ao outro”. E toda a gente sabe que este é o gatilho para tudo o que acontece de menos ponderado quando se tem 11 anos. Começámos a nadar. Quando estávamos sensivelmente a meio o Tiago disse “tens de ter cuidado aqui e ficar o máximo que conseguires à tona porque, antes da barragem, estava aqui uma igreja e se bateres os pés muito fundo vais tocar na cruz que está no telhado”.

A barragem de Montargil foi o primeiro sítio onde aprendi sobre os monstros dos lagos. Muito antes do Nessie já existia para mim a igreja abandonada no fundo de uma barragem. E de alguma forma que só a ficção sabe explicar, os nossos lagos, Luísa, tocam-se: na forma como neles espelhávamos o desconhecido e o mistério; nas brincadeiras infindáveis; no aprender a nadar ou no tentar ficar debaixo de água tanto tempo que as mãos preocupadas das nossas mães nos tentavam logo resgatar às profundezas.

Mão e mãe. As mãos das mães são sempre mais fortes que os monstros.

Os dos lagos e os nossos.

Conta-se que foi no lago Pergusa que Kore foi raptada por Hades, deus do Submundo. Demeter, mãe de Kore, não descansou enquanto a filha não regressou do mundo dos mortos. Em forma de protesto pela enorme fatalidade que lhe ocorrera, Demeter, deusa da terra, secou os campos, tornou as terras estéreis, os ramos secos e os cursos das águas deixaram de correr. Zeus, vendo a forma como Demeter sofria, convenceu Hades a devolver Kore, que se havia tornado Perséfone, ao mundo dos vivos e à sua mãe.

As mães são mais fortes do que os deuses. As mãos das mães são capazes de escavar até ao centro da terra e de enfrentar a morte.

Os gregos acreditavam que a entrada para o reino dos mortos passava pelo Lago Averno e Virgílio, descreveu a descida de Eneias até ao submundo através de uma gruta que ficava perto do lago. Averno, do grego αορνος (Áornos): sem pássaros. Na sua enorme sensibilidade de olhar o mundo, os gregos, que assim baptizaram o lago, devem ter pensado que o sítio onde os mortos viviam a sua eternidade não poderia ter vista para um dos maiores desejos dos vivos: a possibilidade de voar. E o Averno tinha tudo aquilo que os gregos poderiam ter desejado para o seu submundo de sonhos: um aspecto sombrio e lúgubre; solitário e abandonado e sobretudo, o facto de o lago estar numa cratera vulcânica, contactando assim com tudo o que ficava debaixo de terra, incluindo os mortos.

Porém, existem lagos cuja criação tem origem não nas forças da terra mas sim no desconhecido. O lago Bosumtwi, no Ghana, foi criado pelo encontro da terra com um meteorito e tem cerca de 1.07 milhões de anos. Com um diâmetro de 8 quilómetros, o Lago Bosumtwi é o único lago natural do Ghana. Para os Ahsanti o Bosumtwi é um lago sagrado. Olhando a lua e a forma circular do lago, os Ashanti desde cedo perceberam que existia algo que unia estes dois enormes círculos. E nesse desconhecido os Ashanti colocaram também os seus defuntos, acreditando que as almas dos mortos vinham a este lago para se despedir da Deusa da terra, Asase Ya. Tal como nós, os antigos Ashanti não sabiam para onde iam aqueles que já não viviam, mas talvez juntassem no céu todos os mistérios: os mortos, a lua e os cometas. Na lenda que contam sobre a origem do poder sagrado do lago, os Ashanti falam de um caçador que perseguia um antílope ferido pela floresta densa. Subitamente o animal desapareceu dentro de um lago, como se aquele corpo de água estivesse a salvar a vida daquele ser. O caçador nunca conseguiu apanhar o antílope.

Se calhar os lagos não conseguem salvar todas as coisas que os rodeiam e que vivem neles, mas na sua observação do mundo, os lagos vão fazendo esta gestão entre morte e vida, entre céu e terra, entre o visível e o invisível. A árvore que tu nos apresentas, Luísa, também é fruto dessa decisão do lago: durante os meses em que a árvore esteve debaixo de água, o lago trocou as queimaduras pelo alvor, o peso pela leveza, a vida pela eternidade. Se o lago pudesse, teria coberto a árvore de cobre. Mas esperou por ti, pelas tuas mãos.

Quando voltou, a mulher percebeu que as águas do lago tinham descido. E disse o som da morte é o silêncio dos pássaros. Olhou com atenção para o lago e viu que aquele desconhecido tinha dentro de si restos de árvores inteiras. A mulher tirou as mãos dos bolsos e tentou tirar uma árvore de dentro do lago. Mas não conseguia sozinha. Os pais, que perceberam que ela era mesmo a memória de um lago, juntaram-se e como se de um ser de outro mundo se se tratasse, tiraram a árvore de dentro do lago. E a árvore era branca, e leve como se fosse um coral. E a mulher disse, os lagos são como as mãos das mães: dentro delas as coisas nunca morrem.

A mãe olhou à volta e disse olha as árvores estão a nascer.

Catarina Vasconcelos
Novembro 2020

créditos © bruno lopes

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