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Paolo Morais, Pedro Figueiredo Neto, Ricardo Falcão — LINHAS DE FUGA
“Chuva”, a mais recente obra de Claire de Santa Coloma, é composta por 166 fragmentos de madeira talhada e polida que oscilam quase imperceptivelmente no ar, suspensos do tecto a diferentes alturas por finos cabos de aço. É possível entrar dentro de “Chuva” e experimentar o espaço em redor através dela e das relações que criam os vários elementos entre si ou com outras pessoas que estejam presentes. Mas também se pode percorrer esta escultura pelo lado de fora, bordejando as suas margens e observar como ela se modela ao espaço preexistente. Em qualquer dos casos, é uma relação corpo-a-corpo a que se cria entre o espectador e a obra, e este é porventura o trabalho de Santa Coloma em que mais claro fica o desígnio de explorar a fisicalidade inerente à própria ideia de escultura. A artista sempre se interessou pelo léxico tradicional deste meio: verticalidade e suspensão, peso e leveza, proporção e assimetria são qualidades que definem a própria condição objectual da escultura e impõem a sua materialidade para lá das considerações de teor conceptual que possam ser elaboradas a partir da observação distanciada. As formas polidas e sem acidentes dos vários elementos que compõem “Chuva” contrastam com trabalhos anteriores em que os suaves sulcos da goiva modelavam discretamente as superfícies das suas peças. A tactilidade inerente às obras da artista surge aqui reforçada e reflecte o desejo de que o público as saiba apreciar antes de mais através dos sentidos, sugerindo a possibilidade de a experiência do espectador funcionar como uma analogia sensual da experiência do talhe directo do material que é, para Santa Coloma, o grande princípio organizador do fazer artístico. Isto configura, de resto, um «acto de resistência» tal como enunciado no Guia prático para fazer uma escultura básica de madeira que a artista escreveu em 2014. Como aí refere, as esculturas talhadas à mão implicam um «perder tempo» sugestivamente produtivo porque equivalem a «uma maneira de trabalhar o tempo» na qual a artista pode deixar-se «levar pelo ruído das suas ferramentas» e pelo «ritmo contínuo» do talhe que faz com «que o tempo pass[e] quase de maneira concreta». Para Santa Coloma, não é preciso saber exactamente o que se está a fazer, apenas saber que se está a fazer e confiar na «memória do corpo». Foi esta espécie de inconsciência induzida que fez com que, ao longo dos anos, a artista tenha percebido a importância do acaso, o qual, aos poucos, foi ganhando espaço no seu trabalho. O acaso está presente, desde logo, na decisão sobre a quantidade de elementos que compõem “Chuva” e que resulta das condições do lugar para o qual ela foi concebida, a sala principal da Appleton – Associação Cultural. A artista assumiu e integrou na sua proposta os 166 furos dispostos aleatoriamente nos tectos e vigamentos, que aí ficaram de exposições anteriores, suspendendo deles igual número de elementos. A obra incorpora a memória do lugar, tomando como suas as distâncias relativas preexistentes dos furos para determinar a organização espacial dos vários elementos de “Chuva”, e trabalhando as diferentes alturas a que estes estão de modo a, entre outros aspectos, contrariar a ortogonalidade real e pressentida e dotar toda a obra de um ritmo mais fluido. A opção por pequenos troncos de azinheira preparados para lenha é consequente com o interesse de Santa Coloma em trabalhar madeiras autóctones. A azinheira é uma espécie protegida e, sendo a sua madeira dura valorizada por ser de combustão lenta, é aproveitada apenas quando o seu ciclo natural de vida chega ao fim. Como a azinheira não é usada no fabrico de objectos ou mobiliário, a sua riqueza visual é virtualmente desconhecida. Este dado interessa a Santa Coloma, que já em trabalhos anteriores havia recorrido a esta madeira, mas em “Chuva” o polimento final das peças permitiu intensificar e revelar toda a beleza dos contrastes cromáticos que a variedade de veios imprime mesmo às secções mais pequenas de material. Os troncos foram talhados e polidos no decurso de dez semanas, num pequeno estúdio com um amplo terraço de terra batida, ao ar livre, que lhe foi providenciado durante uma residência artística que realizou na mata do Jardim Botânico de Coimbra, e, pela primeira vez, foram usados meios mecânicos para o desbaste. Na obtenção dos objectos finais, a artista seguiu, regra geral, os tamanhos e formas irregulares dos troncos, aceitando mais uma vez o acaso de formas previamente dadas. Para além disso, usou o máximo de madeira, criando o mínimo de desperdício possível, numa lógica de aproveitamento dos recursos disponíveis que, mais do que ambiental, é vitalista, ligada aos processos de decisão banais que visam optimizar a energia e os materiais despendidos nas actividades do quotidiano. Este modo de trabalhar permite que Santa Coloma se dispense de pensar de modo demasiado racional e discursivo no que está a fazer, o que lhe deixa espaço para se concentrar nas múltiplas pequenas resoluções que, a cada instante, tem de tomar, relativamente à direcção e profundidade da goiva ou à exploração possível da forma sugerida por um veio. Mais importante ainda, tal dispensa a artista de se preocupar com o significado do que está a fazer, quer dizer, com o tema ou o assunto. É inevitável que o espectador estabeleça pontos de ligação entre “Chuva” e o mundo das coisas tangíveis e experienciáveis, desde logo porque o título denota o movimento de gotas de água a cair, movimento ilusório porquanto não se está perante uma queda real, mas sim perante uma suspensão que, isso sim, sugere a imobilização no espaço e no tempo de algo que se deslocava. Também é verosímil que o espectador tenha a sensação de estar no meio de uma chuva de meteoritos paralisados na sua trajectória por qualquer fenómeno físico desconhecido. Ou que se demore, quase como se de um jogo se tratasse, no reconhecimento de coisas e seres nas formas biomórficas e lúdicas que resultaram do talhe do material. Mas, para a artista, o assunto do seu trabalho é sempre a própria ideia de escultura e as suas possibilidades de concretização material. Nesta obra em particular, há afinidades passíveis de serem criadas com o universo dos móbiles e da escultura abstracta novecentista, nomeadamente através da própria morfologia orgânica dos objectos tomados individualmente. Mais do que isso, “Chuva” estabelece um diálogo com as linhas sinuosas e com a vocação para a integração das artes do imaginário modernista – também arquitectónico – que abre caminho para uma reflexão sobre o papel operado pelas heranças artísticas legadas pelo século XX nas representações e nas formas pelas quais a arte contemporânea se torna reconhecível enquanto tal. A natureza fluida e estilizada de “Chuva” recupera sem complexos a intensidade decorativa que caracterizou muitas das expressões formais do modernismo e, em particular, da sua utopia vivencial, implicada numa estética aglutinadora de todas as esferas da experiência humana. O facto de a obra se desenvolver no espaço sem realmente o ocupar, tornando-o percorrível e visualizável em toda a sua extensão, faz com que ela se envolva directamente na espessura significante dos espaços quotidianos, promovendo uma confusão intencional entre a arte e os objectos – desde logo o mobiliário – que povoam o dia-a-dia e testando os respectivos limites visuais, funcionais e conceptuais. Quando Santa Coloma começou a testar no seu estúdio a suspensão das peças, verificou que a relação volume-massa destas torna-as sensíveis às mais pequenas deslocações de ar, fazendo-as balançar de forma quase imperceptível e constante. O movimento que isso confere a “Chuva” contraria a qualidade estática que assiste à ideia tradicional de escultura e sugere um dinamismo tendente à horizontalidade que se opõe ao impulso vertical de toda a obra. Dois outros factores reforçam ainda mais os pequenos movimentos a que “Chuva” está sujeita: as torções e o polimento. Santa Coloma usou, durante o processo de talhe, técnicas de torção, por vezes a partir da necessidade de escavar mais profundamente a matéria para a libertar do bicho da madeira, noutros casos aproveitando a morfologia dos troncos mais retorcidos. As torções, exploradas na obtenção de volumes assimétricos e caprichosos, foram uma técnica recorrente na escultura a partir do Renascimento com o objectivo de contrariar, justamente, a qualidade inerte do material e dar-lhe a ilusão de movimento. No caso de “Chuva”, o dinamismo simultaneamente real e aparente é reforçado pelos efeitos giratórios obtidos em várias das peças, revelando como cada uma dela foi trabalhada de forma autónoma e individualizada não obstante fazerem parte da unidade geral que é a obra. O acabamento das superfícies apenas vem sublinhar ainda mais o efeito alcançado: a lixa mecânica, a cera e o polido final tornam as peças muito lisas e macias. A sua suavidade apela ao tacto e sugere que a sensualidade implícita no fazer destas peças, algumas delas com formas sugestivamente eróticas, possa ser transposta para o espectador e para as impressões desencadeadas pelo toque e manuseio das peças. A lisura das superfícies não solicita, apenas, a activação do aparato sensorial do espectador; ela capta a luz ambiente, que Santa Coloma desejaria que fosse sempre natural. A luz faz incidir sobre as peças brilhos e reflexos em constante oscilação, acrescentando mais uma camada de movimento a todo o conjunto, dotado de uma qualidade cinemática em que, mesmo que o efeito de imersão na obra seja fisicamente real, a sua apreensão visual torna-se contemplativa e, por isso, distanciada. Catarina Rosendo
creditos © bruno lopes

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