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Sandra Rocha
Para que servem as pedras senão para serem deslocadas?

Muitos mitos se fazem e desfazem no peso das pedras. O que pode ser símbolo da unidade primitiva do mundo, testemunho da montanha primordial, sinal de estabilidade e permanência, marco de um território que nos pertence; o que pode ser o centro de um mundo nosso, marcar o ponto de passagem para os infernos (“umbigo do mundo”); o que pode ser sexo feminino (“pedra furada”) e ser sexo masculino (“pedra levantada”) e ser ainda “pedra do céu”, descida à terra pelo poder de um raio divino; pode ser também marca de instabilidade, pedra arrastada e rolada e modelada pelas águas e pelos gelos e pelos ventos. Tudo o que é pode ser outra coisa.

Tudo pode transformar-se, ocupar outro lugar, desempenhar outro papel. Para isso criou a humanidade os seus heróis e lhes deu narrativas a cumprir, tantas vezes contraditórias e tantas vezes complementares. Sobre esse chão primitivo dos mitos trabalham certos autores na criação dos seus próprios heróis, das suas próprias narrativas – em geral, vivem a indecibilidade de estatuto, que é a condição da arte e do pensamento depois do romantismo.

Como protagonistas dos vídeos e das fotos de Sandra Rocha temos figuras indecisas na fronteira e nos papéis dos seus próprios corpos: entre o humano, o angélico e o mecânico; entre o masculino, o feminino e a androgenia; entre a adolescência e a idade adulta. Assim são também as paisagens onde esses corpos actuam (porque são sempre corpos performativos, mesmo se expectantes). Movem-se entre a água e o céu, entre a terra e o mar, entre a água e a terra, entre a terra e a terra. Movem-se dentro de cenários complexos: nevoeiros e vegetações densas, quedas de água e lagos em repouso, vagas e terras pedregosas, ventos e frios. Uma coisa une essas figuras isoladas: uma vontade. Exactamente uma vontade de transformação, de deslocação, de modificação. Pode tratar-se de uma transformação interior (há nas séries fotográficas e nos vídeos de Sandra Rocha indícios do que se explora nos romances iniciáticos onde os protagonistas vencem provas sucessivas) mas é no exterior (no corpo visível dos modelos) que essa transformação se reflecte, como se de uma metamorfose animal se tratasse. E pode tratar-se também de uma transformação do mundo devido à única vontade da personagem registada. No caso desta peça, a vontade de mover pedras que, precisamente pelo seu peso simbólico, se interpõem no nosso caminho. E fazê-lo com a força de um gigante arcaico que desafiasse e finalmente vencesse os deuses; ou com a força de um humano que, finalmente, enganasse esses mesmos deuses vingando Sísifo, libertando-o do seu castigo eterno: o castigo de ser homem, de ser mulher, de ser mortal.

João Pinharanda
Paris, Fevereiro 2019

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