Catarina Dias — Digging for fire (…) its own taking place Here. Now. And elsewhere

Curadora: Joana Neves

“Espaço-Cérebro”, ou a arte de fazer com que nada seja o que parece

O espaço de exposição pode ser concebido ao contrário, como um bastidor no qual se penetra para descobrir um universo intricado através de objectos dispostos no espaço. Catarina Dias explica o dispositivo cénico desta forma: “o palco é a cara e o bastidor é o cérebro”. Desta feita, a artista entende esta sua quarta exposição na Vera Cortês Art Agency (que se estende à Appleton Square) como um espaço virtual, ou, mais precisamente, um “espaço-cérebro”. Nele, as obras parecem estar suspensas entre a concepção e a irreversibilidade da realização, como a múmia que ainda respira num dos seus filmes preferidos (Ingmar Bergman, Fanny e Alexander, 1982). Neste “espaço-cérebro” há correspondências entre materiais e associações de ideias, géneros artísticos e faculdades mentais – entre o “interior” e o “exterior”. Só que no trabalho de Catarina Dias, essa interioridade expõe-se não tanto como um reflexo do que a artista pensa, mas como um espaço mental em busca de um corpo.

“Sempre me fascinou o acto de pensar”, diz ela, “o espaço virtual do pensamento é fascinante. O espaço de exposição também é um espaço virtual se for ligado a esta ideia”. Por essa razão, a exposição é pensada como um percurso livre, mas dirigido – um fluxo. O fio condutor desse percurso é, de certa forma, o texto. Catarina Dias materializa a poesia através do gesto do desenho, sobrepondo-o amiúde a uma superfície de pintura que em nada se assemelha à página de um livro. (Uma das suas memórias mais antigas foi ter estado uma tarde inteira a desenhar a letra “a”). Mais facilmente se estabelece um paralelo entre a sua pintura algo atmosférica e o “ideal” parisiense baudelairiano, com o seu “spleen”, as suas nuvens e os seus crepúsculos que embrenham tanto o corpo do poeta como o do leitor/a nas ruelas da cidade.

Os poemas-desenhos da artista ora territorializam, ora desterritorializam o espectador. Por exemplo: o texto é por vezes invertido sobre a tela ou sobre o papel, assemelhando-se a um ponto de vista subjectivo. Parece estar a correr na retina de quem o lê. Para além disso, a artista escreve em inglês. Como para muitos bilingues, ter uma segunda língua é uma condição permanente de alteridade. No seu caso, é também fruto de uma familiaridade biográfica com outro país (o Reino-Unido, onde nasceu, viveu, estudou e trabalhou), que moldou o seu processo mental.

Tal como duas línguas comunicam sem nunca se traduzirem perfeitamente, a sua obra associa linguagens plásticas de modo idiossincrático. Nenhum suporte ou material tem apenas uma função. Nada é exactamente o que parece. O melhor exemplo dessa associação livre é o tratamento pictórico ao qual são submetidos panos, folhas e telas (com camadas de gesso, de pintura, criação de texturas, etc.). Se se tratasse de um palco, poderiam ser décor, fundos expressionistas conferindo tonalidade ao que decorresse perante eles; na galeria, pelo contrário, assumem um papel proeminente e dialéctico com o texto e com o espaço onde se encontram 1 .

Exposição individual em duas partes: Vera Cortês Art Agency: 04/07–19/09/2015 Appleton Square: 08/09–19/09/2015

Tanto os poemas gráficos com oximoros idiomáticos (“deafening silence” / “silêncio ensurdecedor”, por exemplo), como a sobreposição de um desses desenhos sobre um pano pintado ou as telas penduradas em espaços de passagem formam uma coabitação inesperada de elementos tradicionalmente alheios. É conhecido o uso que a artista faz de imagens fragmentadas de jornal impressas sobre pano, muitas vezes com animais – outro corpo próximo mas estranho.

A efemeridade do jornal traduz-se e transforma-se na sua transposição para o pano – cenário – cortina – tenda. Estes suportes são também temporários, mas mais prolongadamente presentes do que um jornal quotidiano. A actualidade estica-se fazendo-se poesia visual por virtude também do cut-up, processo plástico de corte aleatório submetido ao texto, e sistematizado em 1959 pelo escritor William Burroughs e o pintor Brion Gysin.

A estranheza destas associações deve-se também ao facto de cada gesto estar submetido a um processo de transformação. “No meu trabalho, a pintura em si não me interessa”, reconhece Catarina Dias, não deixando de aplicar, aqui e ali, gestos pictórico-conceptuais como o de virar o dripping ao contrário ou aplicar uma linha branca a rolo de modo a criar diferentes ecrãs na mesma superfície. De facto, é necessário um léxico criativo para nos referirmos ao trabalho de Catarina Dias. Gostava de insistir na noção ultra-contemporânea de ecrã, que também pode evocar, contudo, esquemas de Alberti ou Dürer, nos quais a tela ou o papel são os captadores – através de um processo mental de cálculo de proporções e da linha que o manifesta – não só da articulação de um processo criativo mas também das projeções do espectador que situam a obra. Nesse âmbito, as obras de chão, panos pintados e comprimidos, estão em repouso. Se lhes faltam as didascálias de outras obras, têm em contrapartida uma energia contida. Esta aglutinação de corpos alheios, de linguagens, de imagens sensuais tanto através dos materiais como dos poemas e da consciência que estes dão ao espectador de “estar aqui” são o reflexo da mutação substancial, singular e contínua do acto de pensar.

“Thinking is living at the highest possible power, both creative and critical, enfleshed, erotical, and pleasure driven. It is essentially about change and transformations and it is a perversion of sorts, like an unprogrammed mutation”. Rosi Braidotti, Nomadic Theory, The Portable Rosi Braidotti (2011), New York, Columbia University Press.

Joana Neves

HCI / Colecção Maria e Armando Cabral / / /