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Catarina Câmara Pereira e Catarina Mourão — the hissing of summer sands

O filme de Catarina Mourão que está em loop e que dá o nome à peça, nasce de uma memória de infância de conversas que ouvia na praia entre a avó e as amigas dela, que por sua vez recordavam acontecimentos e personagens da praia.

Mas o filme nasce também de um encontro acidental com um plano que encontra por acaso num filme de família depositado nos arquivos do ANIM, Cinemateca Portuguesa. Trata-se de um plano do estranho “Homem do apito” que rondava as praias portuguesas e que assombrava as histórias da sua avó: uma figura angustiante ou familiar, que fazia fugir as crianças ou as atraía como o flautista de Hamelin.

Inspirada em testemunhos de mulheres de 70 e 80 anos que se cruzaram com este homem nas praias portuguesas nas décadas de 1940 a 1960 e na pesquisa de mais de 100 horas de imagens de arquivo rodadas nas praias nessas mesmas décadas, Mourão constrói uma ficção revelando diferentes versões deste homem e da praia que se torna um lugar assombrado.

As imagens de arquivo de família têm sido um elemento transversal à obra de Catarina Mourão nos últimos anos. Estas são um território privilegiado para encontrar representações cinematográficas de sonho e memórias bloqueadas. Aceitando que a memória se constrói ao ser verbalizada ou representada no presente, estes filmes de família tornam-se ferramentas dessa memória construída, ficcionada, mas que é simultaneamente verdadeira porque subjetiva e afectiva.

Mais do que documentário ou ficção, a memória é experimental, um diálogo nem sempre sincronizado entre a banda som e a banda imagem, entre aquilo que achámos que era e que poderia ser; entre o que foi e o que filmámos com o nosso olhar; a percepção-película-memória cujo tempo vai desgastando o registado; o grão a entrar nas histórias, a areia a enrolar-se no mar.

Este filme foi pensado inicialmente para ser mostrado num contexto de instalação. A sala de exposição como uma continuação do espaço da praia, onde o espectador pudesse experienciar o filme de uma forma menos bi-dimensional, tornando-se banhista, misturando-se com outros elementos tridimensionais, os veraneantes de Catarina Câmara Pereira, que prolongam o espaço da praia do filme para a sala….

“Uma psicanalise das artes plásticas consideraria talvez a prática do embalsamento como um facto fundamental da sua génese. Na origem da pintura e da escultura, descobriria o “complexo” da múmia. (…) A morte não é senão a vitoria do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida. (…)  Assim se revela, a partir das suas origens religiosas a função primordial da estatuaria: salvar o ser pela sua aparência. Por outro lado, o cinema é uma linguagem (André Bazin,).”

As figuras são fantasmas naturalistas, equivalentes aos corpos petrificados de Pompéia. Cada uma delas corresponde a um ser que deixou de existir.

A instalação Hissing of Summer Sands desdobra-se em várias camadas de memória. Cada decisão desta peça foi impulsionada por recordações secretas e individuais das duas autoras, as vivências, as estórias que ouviram contar, até ao registo cromático e lumínico dos filmes super8 que captaram as suas infâncias nos anos 70´. Tudo se conjuga num sussurro subliminar de reminiscências imemoráveis, anteriores a uma consciência verbalizável que permitisse organizar o mundo e as suas inquietações. Depois surge a memoria colectiva que nos alerta para a sensação uncanny de que algo se move de forma ameaçadora debaixo da alegria veranil. Por fim, resta ainda o retracto de um tempo e de um país.

A instalação é concebida para acolher um observador-participante que à semelhança da Arte Povera complemente algum sentido à ausência construída. Gerou-se um palco habitado por silêncio onde figuras petrificadas desgastadas pelo tempo, perduram numa indiferença fóssil à narrativa do filme.

creditos © pedro tropa

HCI / Colecção Maria e Armando Cabral / / /